Corte / Relação em Édouard Glissant e Antonin Artaud

Cahier d’un Voyage sur le Nil l [Caderno de uma viagem ao Nilo] [Notebook from a trip to the Nile], 1988. Bibliothèque nationale de France.
Cahier d’un Voyage sur le Nil l [Caderno de uma viagem ao Nilo] [Notebook from a trip to the Nile], 1988. Bibliothèque nationale de France.

Ler os escritos do martinicano Édouard Glissant pode dar a impressão de caminhar por espirais e volutas que constantemente retornam aos mesmos lugares, mas por diferentes ângulos, em aproximações variadas e com nuances poéticas que guardam precisões conceituais gradativas. Glissant, que valorizava a potência do barroco, fez de sua obra um cativante elogio da poética, da errância, do imaginário e da relação. Por isso, lê-lo e relê-lo foi um exercício contínuo na preparação da 34ª Bienal, que desde os seus estágios iniciais enfatizou que os signifi cados das coisas, das obras de arte e das identidades individuais e coletivas estão em transformação constante, alimentada pelos encontros com todas as outras coisas, todas as línguas, todos os lugares, toda a Poética da Relação. Nem sempre a natureza desses encontros é de convergência e harmonia, mas Glissant ajuda a perceber que mesmo grupos confl itantes transformam-se mutuamente, e de forma particularmente profunda e indelével. Valorizar a relação, portanto, não implica idealizar um mundo sem diferenças, mas defender o direito à opacidade, à multiplicidade e à transformação, em um movimento que passa pela demolição dos preceitos de pureza e originalidade que pretensiosamente justifi caram o colonialismo.

Essa tensão entre, por um lado, o desejo de contato e mobilidade e, por outro, a necessidade de ruptura com a dominação colonial está no pano de fundo do diálogo entre Édouard Glissant e Antonin Artaud imaginado por Ana Kiffer. Em sua pesquisa no arquivo deixado por Édouard Glissant, hoje sob guarda da Bibliothèque nationale de France, ela descobriu que Glissant chegou a conceber uma revista que teria um texto de Artaud em sua primeira edição, e a partir desse fi apo de história teceu uma teia que enreda textos, desenhos, cadernos, vozes e fragmentos desses autores à primeira vista tão diferentes. Apresentada na 34ª Bienal, essa teia concretiza um encontro fabulado, tornando palpáveis semelhanças e contrastes entre modos de grafar o pensamento que cortam regimes autoritários de existência e remontam o corpo do mundo em torno de novas políticas da diferença.





  1. Caroline A. Jones, Eyesight Alone: Clement Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
  2. Greenberg’s Modernism and the Bureaucratization of the Senses (Chicago: University of Chicago Press, 2005).
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