Correspondência #17

18 May 2021
Acervo pessoal – Caderno visual número 3 do projeto expositivo Corte/Relação. Paris, Cité Internationale des Arts, dezembro de 2019

Ao longo do processo de construção da 34ª Bienal de São Paulo, sua equipe curatorial, artistas participantes e autores, através de cartas como esta, refletem direta e indiretamente sobre o desenvolvimento da exposição. Esta décima sétima correspondência foi escrita pela pesquisadora e curadora Ana Kiffer.



A arquitetura imaginária de Corte/Relação, exposição de cadernos, cartas e textos manuscritos de Antonin Artaud (1896-1948) e Édouard Glissant (1928-2011), que serão vistos pela primeira vez no Brasil em setembro deste ano, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, em São Paulo, como parte integrante da 34ª Bienal, teve início em 2018, quando pesquisava os arquivos de Glissant, recém-chegados ao acervo da Biblioteca Nacional Francesa. 

Tudo aconteceu de forma intuitiva e imprevisível, muito próximo àquilo que o próprio Glissant convocava como vetores de força de um pensamento do tremor. Ou, como o ditado iorubá, que diz Exu matou um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje. Olhando a Caixa de número 72, em meio a diversos papéis soltos e pequenas agendas diárias do autor, encontro a Carta a Ella. Nela, detalhado em quatro páginas, o projeto de uma “Revista Literária e Cultural”, intitulada Baton Rouge, que ambicionava repensar as relações entre a Europa, o Sul dos Estados Unidos, Caribe e a América Latina. O esboço do primeiro número era indicado, definindo que o texto de abertura seria um determinado inédito de Antonin Artaud, cujo título não foi citado. 

Depois de alguns meses não encontrei nenhum outro vestígio da revista, e com um pouco mais de tempo cheguei à certeza de que ela nunca havia existido. Os meus três primeiros meses de trabalho diário nos arquivos encontravam-se diante de um beco sem saída.  Um ano depois, em conversa com Jacopo Crivelli Visconti e Paulo Miyada, propus os traços iniciais desse projeto, cuja base encontra-se, não sem ironia, nessa série sucessiva de erros, ausências, acasos e falhas. A primeira ausência a partir da qual concebi Corte/Relação foi a de imaginar a revista que nunca existiu. Em seguida, comecei a imaginar esse encontro que nunca ocorreu, entre Artaud e Glissant. Por último, me pus a imaginar quais seriam os arquivos e textos que criariam, a partir da inexistência da revista e do encontro, um sopro possível de existência. Uma fabulação feita com os vestígios daquilo que julgamos aparentemente inexistente; era isso que, naquele momento, definia Corte/Relação e guiava as escolhas dos textos e cadernos manuscritos. 

Tremores, espectros, ancestrais, furos, falhas, esboços, rasuras, sujeiras, desenhos de facas, pregos, pontos cheios de tinta, golpes de lápis, pilot, pastel, guache, cadernos, notas, listas, linhas tortas: inexistentes. São essas as ferramentas plásticas e poéticas dos gestos que semeiam as mãos que escrevem desenhando e desenham escrevendo, de Artaud e de Glissant. Arando a folha, como se terra também fosse. Foram os múltiplos vestígios dessas mãos que habitaram a construção do espaço fabulatório de Corte/Relação, criando uma dobra entre o interior dos arquivos e o exterior das palavras e dos traços materiais que se disseminam hoje nesse solo corrompido da terra brasilis.  

Não faria quase nenhum sentido olharmos para todos esses arquivos-corpos sem nos perguntarmos onde estamos. Mais uma vez, Artaud e Glissant, com suas vozes agudas, dissonantes, feitas de arrepios escondidos, reclamariam por nossos questionamentos. Perfurando os hábitos passivos de nossas escutas apaziguadoras. Foi assim que os ouvi, numa espécie de partícula inaudível do som, que só se propaga nos solos que tremem, e eles me disseram: O que esses arquivos inexistentes nos contam? O que vimos continuamente enterrando? O que ainda nos aterroriza? Qual solo treme sob os nossos pés? Como aterramos nesse mundo desolado do agora, do aqui? Como um país que apaga os seus arquivos narra as suas histórias?

Seguindo esse caminho, Corte/Relação se desdobrou em três gestos seminais: num deles os arquivos foram ouvidos e vistos como arquivos-corpos – prenhes do que soterramos, porque quando se ocultam e silenciam as nossas histórias são os próprios corpos que vêm nos contar. Por outro lado, a dobra entre arquivos e corpos foi pensada como uma dobra entre interior e exterior, desenhando, por conseguinte, múltiplos solos que partiram de Baton Rouge para Brasil-Europa, Martinica-França, América Latina, Améfrica Ladina e África, África-Brasil e de novo. Esse gesto buscou um arquipélago de ressonâncias entre Artaud e Glissant, mas também a partir deles, e daquilo que material e virtualmente seus textos e projetos evocavam. Um confronto percussivo face ao massacre passado, presente, dos povos originários e do holocausto negro da escravidão. Dobra entre o que foi e o que ainda é. 

Em seguida era preciso fabular esse encontro fictício entre Artaud e Glissant. Imaginei que o texto de abertura da Revista teria sido a versão preparatória do então inédito Paris-Varsóvia escrito por Artaud em 1947. Tinha alguns indícios em torno da data de publicação do texto. Também conversas com outros pesquisadores de Artaud. Mas nada disso era definidor. E essa escolha talvez tenha ocorrido apenas porque estava imbuída das conferências que Georges Didi-Huberman fazia naquele momento sobre os arquivos do Gueto de Varsóvia. Ou talvez porque nesse texto os múltiplos ódios que enumera Artaud indicassem os tremores atuais do nosso mundo e, ao mesmo tempo, aquilo que Glissant não havia pensado: o ódio. Seu convite permanente para a construção de uma poética-política da Relação não era, no entanto, apaziguador. E eu precisava pensar sobre isso. Ainda mais num país como o Brasil, onde relação vem significando abuso e extremos, ou uma espécie de mundo sem conflitos, uma miscigenação alegre e apaziguada. 

Era preciso observar que mesmo que a força do ódio não insurja em sua obra, nem conceitual nem plasticamente, como vemos nos sucessivos golpes e cortes, furos e fogo que povoam e perfuram os cadernos e cartas de Artaud, esse insurrecto do corpo, a Relação, para Glissant, não participa do imaginário de um mundo sem conflitos. Ao contrário, ela exige rever radicalmente o corte Ocidental que cunhou a noção de Outro para apartá-lo, dominá-lo, conquistá-lo ou exterminá-lo. O deslocamento que opera a Relação incide sobre o desabamento das noções prescritas do mundo do “eu” contra o desconhecido e desprezível mundo do “outro”. A Relação como primazia revoga a centralidade mesma do Ser Ocidental. 

Um mundo só existe em relação, e esse mundo continua sendo o nosso maior desafio. Agora mais do que nunca, quando os custos dos contínuos apartheids, muros, fronteiras, governo e controle dos reconhecidos “eus” contra os ditos “outros” mostra sua face irremediável e terrível, comprometendo sem precedentes a ideia e a sobrevivência de um Todo-Mundo. 

Por tudo isso, também, o último e invisível gesto de Corte/Relação foi o de localizar esses autores, que nunca se encontraram, em suas rotas de colisão: um com o outro, e deles conosco. Artaud deixa a França em 1936, assinando, na capa do livro escrito pouco antes de sua viagem, O Revelado. Veio em busca de um México muito específico: o dos índios tarahumara, o da montanha dos signos, o de uma civilização, segundo ele, mais civilizada do que a ideia de cultura europeia poderia imaginar. Glissant deixa a Martinica rumo a França em 1946, dois anos antes da morte de Artaud, dizendo ser aquele que retorna. O Retornado. Depois dos abismos do mar, dos corpos que não sobreviveram ao tráfico escravista, à viagem forçada, à barca que arrancou os mais diferentes povos e culturas de uma terra, de um solo comum, rumo ao destino, repetidas vezes, de seu próprio fim, o retornado é aquele que descende, inevitavelmente, de um sobrevivente. De um ancestral que não morreu nos múltiplos abismos: o da escravidão, do açoite, da tortura, do desprezo, do abuso, e antes disso, o do próprio mar e de sua travessia, o dessa mesma barca que tempos depois ele toma no sentido inverso. Artaud, num de seus últimos textos escreve sobre o abismo insondável da face, o abismo-corpo, o abismo que sopra ainda os ventos do lado de cá. Em torno desses abismos da famigerada ideia de humanidade, o Revelado encontra o Retornado. 

Se tomarmos realmente a sério o que nos disseram esses autores, teremos que, no caso do Brasil, reescrever toda a nossa história. Questionando do início ao fim o edifício letrado que cultivamos como um falacioso solo comum, hoje mais uma vez em tremor. Os cadernos, como esboços e zonas de trânsito entre diferentes regimes, incluso não linguageiros (ou povoados por línguas que nossos ouvidos surdos ainda desconhecem), nos aproximariam daquilo que a materialidade ancestral dos povos entre nós apartados dos regimes da escrita não deixaram de construir e de inscrever. Seria essa também uma oportunidade para ouvirmos os fantasmas e espectros que perpassam esse arquipélago de textos reunidos em Corte/Relação? Desejo, desejo: fabulação, imaginação, assim te escrevo, como mais uma carta, jogada ao mar.  

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